sábado, 30 de outubro de 2010

A VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL E A TEORIA PSICANÁLITICA DE FREUD

Margareth Brandão Mendes Silva

Curso de Especialização Filosofia e Psicanálise

UFES – Universidade Federal do Espírito Santo

Disciplina: Freud como teórico da modernidade bloqueada

Professor: Vladimir Safatle

Pólo Itapemirim

Resumo

O presente artigo pretende realizar uma breve abordagem sobre o abuso sexual cometido contra crianças e adolescentes, em muitos casos no próprio seio familiar, por pessoas que deveriam protegê-las e resguardá-las de quaisquer tipos de violência que comprometam sua integridade física e moral. As conseqüências psico- traumáticas originadas da agressão sexual podem causar danos por toda vida da vítima. O psicanalista Sigmund Freud foi um dos primeiros profissionais a tratar da teoria da sexualidade infantil e suas patologias.

Palavras-chave: Abuso sexual, Sigmund Freud, teoria da sexualidade infantil.

Abstract

This article intends to hold a brief discussion of sexual abuse committed against children and adolescents, in many cases within family, by people who should protect and guard against them of any types of violence that can compromise your physical and moral integrity. The traumatic consequences of psycho-sexual assault originated may cause damage throughout the life of the victim. The psychoanalyst Sigmund Freud was one of the first professional treating infant theory of sexuality and its pathologies.

Keywords: Sexual abuse, Sigmund Freud, Theory of children's sexuality.

Introdução

De acordo com Foucault, a sexualidade é tão valorizada porque foi dado a ela o sentido de secretibilidade, de obscuridade, deste modo teoriza-se de que o proibido torna-se atraente. Desde os tempos mais remotos, fomos orientados e somos coagidos a reprimir nossos próprios anseios e desejos. O indivíduo que não consegue controlar, coibir seus próprios desejos, e se deixa levar pela volúpia das emoções é visto como sujeito ‘anormal’, já que não corresponde ao padrão idealizado pela sociedade.

Metaforicamente, Freud sugere que “ao atirarmos ao chão um cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte segundo suas linhas de clivagem.” (1999, 64) Com o indivíduo ocorre o mesmo quando suas emoções sofrem uma ruptura, a fragmentação do ‘eu’ não é aleatória, mas se encaixam perfeitamente à medida que seus traumas são desvendados. Assim, o sujeito é dito normal quando se adapta aos ideais propostos pela sociedade, ou seja, ele consegue conviver com a repressão dos seus sentimentos, sem que lhe seja atribuído nenhum problema psíquico. Já o sujeito patológico sofre o descontrole de suas emoções, e quando são fragmentadas, e ele não consegue lidar com tal ruptura, torna-se um indivíduo neurótico, sendo rejeitado pela coletividade, por não adequar-se aos padrões sociais pré-estabelecidos.

Freud analisou no decorrer de seu trabalho clínico, que muitos pacientes relatavam experiências sexuais traumáticas vividas na infância, e por muitas vezes ocorridas no ambiente intrafamiliar. Em seu trabalho apresentado, em 1896, para a comunidade Vienense de Psiquiatria e Neurologia, foi relatado pelo próprio psiquiatra, que os traumas apresentados e revelados por seus pacientes, eram provenientes das seduções ocorridas na infância, normalmente por parentes mais velhos, e em muitas situações pelo próprio pai. Apesar da rejeição à ideia de Freud, por parte do grupo de cientistas, anos mais tarde, ficaram comprovados que os abusos sexuais cometidos contra crianças era um fato, e não apenas um discurso meramente científico ou relatos de episódios fantasiosos, embora, o próprio Freud tenha constatado, posteriormente, que muitos destes casos fossem imaginários.

1. A visão da sexualidade na sociedade moderna

Desde a antiguidade, em desenhos pré-históricos, em obras de arte, a sensualidade do corpo humano vem sendo retratada, sobretudo, enfatizando os órgãos sexuais. Na civilização grega, a mitologia identificava o deus Eros, como o deus do amor e dos apetites sexuais, responsável pela atração entre os corpos. Freud referia-se ao Eros da mitologia grega, como a libido, força vital de amor na concepção psicanalítica da sexualidade.

Na hodiernidade, o culto à concupiscência humana adquiriu apelo à exploração da sexualidade e à explosão de desejos libertinos, pulsões sexuais, que por vezes foge do controle humano. Na perspectiva grega, ceder aos instintos, ser derrotado por eles, era visto como vergonhoso. No âmbito social contemporâneo, o indivíduo que não consegue conceber sua sexualidade de modo saudável e apresenta desvio de comportamento no que concerne às atitudes sexuais é considerado, do ponto de vista patológico, como portador de transtorno sexual, um sujeito neurótico.

Nessa linha de reflexão, Freud ressalta que os indícios das neuroses surgem não apenas das pulsões sexuais naturais, mas também das perversas. “Portanto, os sintomas se formam, em parte, a expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão.” (1905, 157) Pulsão, no aspecto psíquico, representa uma fonte de excitações internas, estando entre os prazeres da alma e os prazeres físicos. Ainda, segundo a visão freudiana

O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades específicas é a relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico. (1905, 159)

As parafilias, termo designado atualmente às perversões sexuais, são praticadas por uma pequena parcela da população, mas não há como negar, que causam horror e espanto. A única forma de caracterizar a parafilia como transtorno psíquico, isto é, como doença, se esta for a única forma de satisfação sexual do indivíduo.

No contexto abordar-se-á um tipo de perversão, o abuso sexual praticado contra menores. O abuso sexual, como Freud já havia observado, ocorre na maioria dos casos, por pessoas do sexo masculino e, geralmente, os abusadores são pais, padrastos, tios, etc. A esse tipo de envolvimento Freud caracterizou como incesto, sendo definido por uma relação sexual ou marital entre parentes consanguíneos ou afins, ou ainda, que possua alguma restrição sexual no meio social. É um tabu em quase todas as culturas, sendo por isto considerado um tabu universal. O incesto é punido como crime em algumas jurisdições, e religiosamente falando, é considerado um ato pecaminoso.

O abuso sexual ocorre em quaisquer níveis sócio-econômicos, independente da raça ou do grau de escolaridade, no entanto incide com maior frequência, em famílias de baixa renda (HABIGZANG, KOLLER, AZEVEDO, et al. 2005). Comumente o abusador sexual é conhecido e exerce controle sobre a vítima, geralmente, é uma pessoa de quem a vítima gosta ou confia, daí a violência pode-se prolongar por muito tempo.

O molestador, habitualmente, utiliza artifícios como chantagem, ameaças, presentes para seduzir, a fim de deflorar, explorar sexualmente e obter o silêncio da vítima. O violentado se sujeita a aceitar a situação por receio, sem denunciar o agressor, por medo de represálias.

O desamparo emocional causado pelo abuso sexual provoca o desencantamento de mundo. A ruptura psicológica do indivíduo provoca sequelas psíquicas para uma vida inteira, as crianças e/ou adolescentes abusadas sexualmente podem apresentar mudanças comportamentais, interesse excessivo ou bloqueio de natureza sexual, agressividade, pânico de pessoas ou lugares, depressão, sensação de estar com o corpo sujo e impuro são alguns problemas que podem ser mencionados.

Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente

Art. 18. É dever de todos, velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

O adolescente ou criança, ao sofrer abusos sexuais, é desrespeitado enquanto ser humano, tem seus direitos violados. Mas o que mais assusta é que a maioria dos casos ocorre dentro do próprio âmbito familiar, por pessoas próximas, que têm a obrigatoriedade de resguardá-la, protegê-la de agressões que comprometam seu desenvolvimento psicossocial.

2. A concepção freudiana sobre a relação entre psicanálise e sexualidade

Sigmund Freud, (1856-1939), considerado o criador da Psicanálise, foi um dos estudiosos que causou a maior revolução do pensamento da época. Nasceu em Morávia (Império Austríaco), atual República Tcheca, em uma família judaica. Formou-se em Medicina em 1881, pela Universidade de Viena, onde posteriormente tornou-se professor e, paralelamente, manteve um consultório para tratar de pacientes portadores de distúrbios psicológicos.

Em "Freud - Além da alma" (1962), John Huston aborda, a princípio, que desde a Antiguidade, houve três momentos que romperam paradigmas da concepção do homem sobre si mesmo. O primeiro modelo refere-se à teoria do astrônomo Nicolau Copérnico, que derruba a hipótese de que a Terra era o centro do Universo, sustentada por Ptolomeu, onde se acreditava que os corpos celestes giravam ao redor do nosso planeta, e somos forçados a admitir que a Terra seja mais um dentre muitos planetas que giram ao redor do Sol, e que há outros sistemas além do nosso. O segundo paradigma, de acordo com a Teoria da Evolução do biólogo Charles Darwin, prova que o homem não era uma espécie única, apartada do Reino Animal, mas é descendente de um primata, sendo uma espécie de organismo físico, produto de um processo evolutivo e não um ser peculiar, cunhado por Deus para dominar a Natureza. E o terceiro momento, em que antes de Freud, o homem acreditava que o que fazia e dizia era fruto de sua vontade consciente, no entanto o psiquiatra demonstrou a existência de outra parte de nossas mentes que funciona na obscuridade, e este lado misterioso da mente humana é até capaz de dominar nossas vidas.

Na obra Cinco ensaios sobre a Psicanálise, Freud escreve, citado por Chauí

A psicanálise propõe mostrar que o EU não é senhor na sua própria casa, mas também está reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica... A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise, sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos patológicos, tão frequentes quanto graves, da vida psíquica e fazê-los entrar na quadra da ciência... A psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo a essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar. (2002, 84)

No início do século XX, Sigmund Freud iniciou o desenvolvimento de sua teoria psicanalítica, que trouxe grande impacto não apenas nos campos da psiquiatria e da psicologia, mas ainda na filosofia e nas ciências humanas e sociais. “Durante toda sua vida Freud, não cessou de reformular a teoria psicanalítica, abandonando alguns conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras” (CHAUÍ, 2002, 85), de modo que tais reformulações atendessem seus anseios de buscar respostas às neuroses manifestadas por seus pacientes.

A teoria freudiana causou grande incômodo na comunidade científica da época, especialmente no que diz respeito à linha filosófica do pensamento, haja vista que a teoria da Filosofia definia o homem como um ser consciente e racional. A intencionalidade do estudo da Psicanálise não é de reprimir o pensamento inconsciente, mas sim de mostrar que a existência de tal, pode explicar a necessidade do homem em sufocar suas pulsões, ou seja, impedir que tais se tornassem conscientes.

Ao tratar clinicamente seus pacientes, Freud percebeu que por mais que seus pacientes almejassem alcançar a cura conscientemente, o pensamento inconsciente, desconhecido, criava uma espécie de bloqueio, uma resistência à cura. Partindo dessa premissa, Freud teoriza que a consciência é a menor e mais fraca de nossa vida psíquica”. (CHAUÍ, 2002, 84).

Segundo a concepção freudiana a existência psíquica constitui-se em três instâncias, o id (isso), o super ego (super eu) e o ego (eu), em que as duas primeiras são caracterizadas como inconscientes e a terceira refere-se ao pensamento consciente. O psiquiatra foi o primeiro pesquisador a tratar das manifestações sexuais, desde a infância até a vida adulta. Seus estudos sobre sexualidade obteve relevância a partir de seu trabalho " Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade."

Freud define o id como o responsável pelas pulsões, é constituído pelos instintos e desejos inconscientes do homem, conduzido pelo princípio do prazer, pela satisfação imediata.

Contanto, Freud utiliza o neologismo libido

Para designar a energia dinâmica da vida psíquica, do indivíduo e expressando não só a pulsão sexual, mas suas tendências afetivas (amor sexual) e as demais variedades de amor (de si, pelos pais, pelos filhos, a amizade etc.) (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, 169).

Em relação ao superego, que também se caracteriza por um desejo inconsciente, o homem reprime seus instintos sexuais. Há, nesse aspecto, a censura às pulsões do indivíduo, por causa de sua consciência indiretamente moral, segundo princípios éticos e morais impostos pela sociedade.

O ego ou o eu é definido por Freud como o pensamento consciente do indivíduo, e está submetido aos anseios do id e a coibição do super eu, tal manifestação de pensamento busca satisfazer às exigências do id e do super ego, sem transgredir as normas e condutas sociais.

Freud foi além da idéia de classificar as formas de manifestação do pensamento consciente e inconsciente. No decorrer dos tratamentos clínicos aos quais seus pacientes eram submetidos, o psiquiatra percebeu que eles apresentavam distúrbios de histeria ou de natureza hipocondríaca intimamente relacionados a sentimentos de ordem sexual, geralmente, que foram sobrepujados, ou eram oriundos de experiências sexuais perturbadoras. O impulso sexual não se apresentava ao consciente, pois se tratava segundo Freud, de uma manifestação inconsciente da libido, e que consequentemente, para não ferir a moral e os bons costumes da sociedade, age na supressão dos sentimentos, das emoções instintivas, uma vez que deixar vir à tona tais desejos reprimidos escandalizaria o modelo comportamental concebido pela sociedade.

De acordo com CHAUÍ (2002, 86) para Freud, “o ego é ‘um pobre coitado’, espremido entre três escravidões: os desejos insaciáveis do id, a severidade repressiva do super ego e os perigos do mundo exterior”. Por esse motivo, o ego se formaliza no íntimo do ser humano pela existência da angústia, num constante conflito de valores, haja vista que ao se submeter aos impulsos do desejo inconsciente do id, torna-se um indivíduo pervertido e imoral. Caso não deixe extravasar suas emoções, o homem submete-se a tornar-se frustrado, insatisfeito, por não concretizar seus anseios. Ao pensamento consciente, ou seja, ao ego, cabe à função de buscar o equilíbrio das emoções, encontrar um caminho onde seja possível controlar/satisfazer seus prazeres, a fim de não se tornar um indivíduo frustrado e de modo que não cause ferimentos a moralidade social.

Considerações Finais

Dentro dessa dimensão, a criança ou adolescente que sofre algum tipo de abuso sexual é despertada precocemente, de modo deturpado e traumático para o sexo, subtendo-se a traumas psicológicos para a vida inteira. Há grandes possibilidades de desenvolver comportamentos neuróticos, podendo futuramente apresentar aversão a parceiros do mesmo sexo do abusador, apresentar descontrole sobre a sexualidade, além disso, deve-se considerar que o indivíduo submetido à violência sexual, pode se tornar um explorador sexual em potencial.

Mediante o exposto, é importante ressaltar que tanto o indivíduo molestado quanto o sujeito causador de práticas de violência sexual necessitam de tratamento, haja vista que o primeiro está pré-disposto a adquirir traumas que comprometem sua integridade física, moral e emocional e, o segundo por apresentar transtornos sexuais de caráter amoral e psicopatológico.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Cap. II, Art. 18.

CHAUÍ, Marilena. Filosofia. São Paulo: Ática, 2002, p. 83-87.

FOUCAULT, Michel; Maladie mentale et psychologie, Paris: PUF, 2005.

FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke (GW) vol. XV, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 64.

_____; Totem e Tabu, Frankfurt: Fischer, 1999.

_____; Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade vol.7. 1905.

HABIGZANG, Luísa F; KOLLER, Sílvia H; AZEVEDO, Gabriela Azen; MACHADO, Paula Xavier. Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: aspectos observados em processos jurídicos, Rio Grande do Sul. Dez. 2005. Disponível em www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-37722005000300011&script=sci_arttext&tlng=es. Acesso em 10 de outubro de 2010

http://www.archive.org/details/Pfilosofia-freud383-4. Acesso em 10 de outubro de 2010.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

JONES, Ernest. La vie et l’oeuvre de Sigmund Freud. Paris: Presses Universitaires de France, 1970. t 1.

Fragmentos da Vida

"Existem momentos na vida da gente, em que as palavras perdem o sentido ou parecem inúteis, e, por mais que a gente pense numa forma de empregá-las elas parecem não servir. Então a gente não diz, apenas sente."

Sigmund Freud

Por Margareth Brandão Mendes